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terça-feira, 29 de dezembro de 2009

A BONDADE NÃO DEPENDE DA CLASSE SOCIAL


Sem título (1981), de Jean-Michel Basquiat

Na quarta-feira passada, quando voltava de ônibus para casa, testemunhei um incidente bastante desagradável. Era tarde da noite, véspera da véspera de Natal, e não havia muitos passageiros. Um deles, porém, se destacava – um homem de aparência simples, que trazia consigo uma mochila de mão e uma série de caixas de papelão desmontadas. Ele ficara nas proximidades da porta traseira para não atrapalhar o movimento no corredor. Havia também uma mulher, tão humilde quanto ele, com os braços pensos por causa das inúmeras sacolinhas de supermercado que carregava. Não os vi no primeiro instante, pois estava sentado mais à frente. Sei apenas que, passados dois ou três pontos após o ônibus ter partido, senti a velocidade diminuir. Alguém queria descer. Pois bem, o motorista encostou, a porta se abriu e todos ouvimos os passos na escada de metal. Partimos novamente em seguida. Então, o homem das caixas de papelão começou a gritar: “Espera aí, moço, ela ia subir, ela não queria descer não”. O motorista parou no meio da rua – tinha avançado uns vinte metros do ponto. O homem continuava a gritar, meio assustado, mas não conseguia se explicar.

Depois de algum tempo, compreendi o ocorrido: para abrir espaço ao passageiro que descia, a mulher das sacolas desceu primeiro. Tinha a intenção de retornar ao veículo, só que o motorista não entendeu, fechou a porta e acelerou. Não foi culpa sua, claro, jamais poderíamos imaginar uma situação dessas com tão pouca gente a bordo. Ainda bem que o homem das caixas de papelão percebeu e deu o alerta.

Abriu-se a porta novamente e ele colocou a cabeça para fora. Gesticulou para a mulher, mas ela estava tão injuriada que não queria voltar. Ficamos todos suspensos em sua indecisão e começamos a nos entreolhar.

Eis que o digníssimo senhor ao meu lado, muito bem aparentado, diga-se de passagem, começa a gritar: “Deixa ela aí, motorista. Vamos embora logo!” Era o exato oposto do homem das caixas de papelão, ou seja, sabia se expressar, embora fosse um belo mal educado. Fiquei pasmo. O que ele ganharia com aquele egoísmo? Incomodou-me profundamente. Todo mundo estava cansado. Era Natal, bolas, tínhamos isso em comum. O tal senhor tentou mais algumas vezes, sem sucesso. Balançou a cabeça de um lado para o outro, virou na direção da própria indignação e ficou ali, bufando. Dava para ver o ar que saía de seu nariz embaçando o vidro da janela.

Passados alguns segundos, a mulher resolveu voltar ao ônibus, meio ofendida, meio sem graça. Deixou-nos novamente poucos pontos depois. O homem das caixas ajudou e puxou a cordinha que dá o sinal.
Tive que suportar o repugnante Sir ao meu lado durante mais uns cinco ou dez minutos, até ele descer, finalmente, levando sua tensão estúpida consigo. No lugar, sentou-se o homem das caixas, todo maltrapilho, coitado. Foi o herói do dia e nem percebeu, preocupado que estava com suas caixas, que poderiam cair e bloquear os degraus. Mas elas ficaram quietinhas ali. O ônibus então parou mais uma vez. Eu desci e o homem seguiu viagem. É provável que ainda demorasse muito para chegar em casa.