segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
AMOR, SUBLIME AMOR
(sem título), de George F. Mobley
Chove, chuva. Chove sem parar. Ah, Jorge Ben Jor, o senhor sabe das coisas, já reivindicava há muito tempo essa moda de agora; a tal da chuva, não há quem a tire das manchetes. Se nos idos de FHC o problema era a falta, nos tempos de Lulalá é o excesso. Retrato perfeito do Brasil, terra do oito ou oitenta, do amor e do ódio, das tragicomédias em família. Eu queria dizer que, no final, é sempre o inocente que se ferra. Queria mesmo. Mas a verdade é que não há inocentes nessa história. Estamos em Manguetown e todo mundo está enfiado na lama de um jeito ou de outro, muitos até o pescoço. Bobeou, piscou, vai preso em nome da lei. Isso porque você também colabora com a enchente, seja de maneira ativa, jogando lixo nas ruas; seja simplesmente ficando sentado no sofá observando a chuva cair sem fazer nada para remediar o problema, sem cobrar melhorias no sistema de saneamento, sem perguntar para onde foi a verba que estava aqui. O gato comeu? Ah, é muito cômodo afundar a bunda no sofá enquanto os outros afundam nas águas barrentas da inundação. Nem tente se isentar!, desculpa esfarrapada não cola. Se qualquer garoa hoje em dia gera dilúvio, tem cara-pálida dizendo que isso não passa de tempestade em copo d'água. Não passa de falta de vergonha na cara, isso sim. Vá dizer para aquele povo que viu seus poucos bens saírem boiando pela janela da cozinha, que viu o vizinho ser desenterrado pelos bombeiros para ser reenterrado algumas horas mais tarde, que a enchente é culpa da natureza; aquele povo que só conhece tempestade em copo de requeijão. A-ham. Trouxa aqui, meu amigo, nem mesmo os do Harry Potter, pois não há magia que reverta este quadro absurdo com um toque de varinha. Se a vida fosse um conto de fadas, os lobos maus teriam superpovoado o bosque. E agora não precisamos nem esperar as águas de março chegarem, veja que beleza, pois é pau, é pedra, é o fim do caminho em qualquer época do ano. Superaquecimento global? Imagina, é mais conveniente acreditar que se trata de intriga da oposição, plano dos países ricos para impedir o desenvolvimento dos pobres. Me poupe... É o resto do toco, é o carro enguiçado, isso sim; são as previsões certeiras do nosso Tom Jobim. As orelhas de São Pedro que o digam, devem estar fervilhando de tão vermelhas, tanto que falam mal do seu trabalho. O coitado não deve estar entendendo nada, no mínimo já solicitou ao Ibope uma pesquisa de campo para verificar os motivos de sua água causar tamanho estrago. Será que o volume foi tão mais alto assim, que não estávamos preparados? Aposto que é apenas restituição pela secura dos Natais passados. Afinal, o que é certo assim o é, o próprio nome já diz, o Santo não ia calotear. Já os diabinhos daqui da Terra... Fato é que o ralo do Brasil está entupido de tanta sujeira, sujeira que atravanca nossos anais políticos, econômicos e sociais. Nossa piscina está cheia de ratos, como dizia o Cazuza. Pois no fatídico oito de dezembro paulistano, dia em que tudo foi definitivamente por água abaixo, comecei a ler a Crônica da estação das chuvas, do japonês Nagai Kafu. Foi de propósito mesmo, pura ironia. O livro fala de Tóquio no início do século XX, com sua movimentada vida noturna e seus problemas típicos de um povo perdido entre a tradição oriental e os novos valores ocidentais. A chuva está sempre ali, embora raramente possamos vê-la; o autor apenas a sugere, citando o ar úmido e pesado, a lama, o calçamento escorregadio, as barras dos quimonos levantadas... é bonito, meio poético, tem uma carga simbólica, sabe? Tem esse amor pela vida e pela cidade. Bem diferente do que ando vendo nos telejornais. Pois a arte costuma retratar a chuva como um fenômeno sublime da natureza, tão real e ao mesmo tempo tão fantástico que é lindo e também amedrontador. Ela nos faz lavar a alma, definitivamente. Pena que a situação brasileira esteja entrando num beco sem saída. E, como toda novela que se preza, desta também já conheço o final: vão esperar a estação das secas chegar e dizer que os problemas de enchente são águas passadas. Que triste... Talvez, nos últimos tempos, não esteja apenas chovendo. Talvez seja o céu chorando por nós.