As histórias de Kawabata foram muito importantes para mim. Seu tom leve e simbólico me fascinou de imediato, deixando uma marca permanente em minha vida assim como quando continuamos a ver um ponto luminoso mesmo depois de cerrarmos as pálpebras. Ele fala de furacões com a sutileza de uma brisa; quem o lê, sente o toque delicado de suas palavras, porém, ao fim do texto, percebe a devastação de suas críticas.
Gostaria de compartilhar essas percepções com você, leitor. Por isso, ao pensar num tema para criticar, não titubeei. Foi logo Kawabata. Espero que minha empolgação por seus textos contagie a ponto de levar mais pessoas a lê-los.
No mais, gostaria de agradecer a Daniel Piza pelos ensinamentos e comentários que fizeram esta crítica acontecer.
Prato na técnica sometsuke com motivo de pinheiro, bambu e ameixeira.
Porcelana Nebeshima, período Edo (1770-1790).
Porcelana Nebeshima, período Edo (1770-1790).
Chieko descobriu que as violetas floresceram no tronco do velho bordo.
Ah! Elas haviam florido naquele ano de novo, pensou ela diante da suavidade da primavera.
O bordo era realmente grande para o pequeno jardim no meio da cidade, seu tronco mais corpulento que os quadris dela. Muito embora a superfície velha e áspera do tronco, coberta de musgo, não pudesse ser comparada a seu corpo jovem e delicado...
Na altura do quadril de Chieko, o tronco ligeiramente retorcido da árvore dobrava-se à direita, logo acima da cabeça dela. A partir dessa dobra, numerosos galhos se estendiam em todas as direções e dominavam o jardim. As extremidades dos longos ramos pendiam um pouco devido ao próprio peso.
Logo abaixo da dobra parecia haver duas pequenas cavidades, e em cada uma delas cresciam violetas que floriam a cada primavera. Pelo que se lembrava Chieko, aqueles dois pés de violeta sempre estiveram ali.
Trinta centímetros separavam as violetas de cima das de baixo. Chieko, que chegava à plenitude da mocidade, às vezes se perguntava a si mesma se elas se encontrariam algum dia.
Assim começa o romance Kyoto (1962), do mestre japonês Yasunari Kawabata, livro que determina um marco importante em sua carreira e um dos três títulos citados quando o escritor recebeu o Prêmio Nobel de 1968. Ao ler o trecho acima, depois de já ter conhecido boa parte das suas criações, fiquei me perguntando como é possível pintar usando palavras, assim como se escreve com pincel e tintas. Pois já me deparei com milhares de pinturas narrativas, que retratam acontecimentos da história por meio de execuções magistrais. A Idade Média está repleta delas; basta voltar aos anos de 1200 e observá-las em castelos e igrejas. É verdade que a prática já existia desde muito antes, talvez desde a pré-história, mas foi com artistas do porte de Cimabue, Duccio e Giotto que ela atingiu o auge da condensação narrativa pela primeira vez, resumindo mitologias complexas a uma única cena, aglutinando paisagens, momentos históricos e personagens bíblicos diversos para a composição de uma só peça de altar, por exemplo. Algumas vezes, estão presentes na mesma composição duas cidades que na verdade ficam bem distantes uma da outra; ou Jesus, Adão, um governante contemporâneo ao pintor, vestimentas gregas, criaturas fantásticas orientais etc., tudo isso por conta de um alto grau de estilização e com objetivo de incluir uma lenda inteira em uma única obra.
A tentação de Cristo na montanha, de Duccio di Buoninsegna, (1308-1311).
Esta narrativa em forma pictórica continuou firme e forte até o século XIX, com o romantismo, aperfeiçoando-se e atingindo novos patamares técnicos. Ainda hoje se encontra artistas praticando-a, consciente ou inconscientemente, ao redor do mundo. Em certo nível, talvez a narrativa seja inerente à pintura. Mas, e o oposto? Quer dizer, é possível pintar usando palavras no lugar de tintas ou, para ser mais claro, criar cenas pictóricas em páginas de livros?
A resposta óbvia seria dizer que sim, isso se faz retratando cenários ou pessoas, descrevendo-os detalhadamente e contando com a imaginação do leitor para preenchê-los de cor. Grandes escritores fizeram obras-primas seguindo por este caminho. Émile Zola, com O germinal (1885), quis até mesmo banir toda imaginação da obra literária, tentando criar uma espécie de documentação sobre o operariado francês – mineradores, mais precisamente – em meio às segregações causadas pela Revolução Industrial. Marcel Proust, por sua vez, conseguiu compreender e retratar a alta sociedade francesa do início do século XX – da qual ele próprio participou ativamente durante quase toda a vida – como ninguém jamais havia feito antes, revelando uma realidade escondida no comportamento das pessoas e distribuindo sua crítica inteligente pelos sete volumes de Em busca do tempo perdido (1908-1922). O resultado é um panorama muito mais rico, dinâmico e interessante do que se faria hoje com estudos acadêmicos, por exemplo, tomados à distância e possivelmente escritos com tom mais frio e impessoal.
Embora cada um o tenha feito à sua maneira – bem diferentes, cá entre nós –, estes dois escritores souberam muito bem pintar com palavras, descrevendo paisagens, retratos e naturezas-mortas para tratar de universos complexos em uma única obra; aglutinando momentos e figuras importantes da história mais ou menos como faziam os pintores góticos, num movimento de condensação que parte do todo em direção ao uno.
Mas a pintura literária não precisa necessariamente acontecer assim, tentando retratar complexidades por meio de descrições detalhadas ou excessos de informação. Nesse sentido, o escritor japonês Yasunari Kawabata foi um mestre. Nascido em 1899 e assumidamente influenciado pelas vanguardas europeias do início do século seguinte, em especial o surrealismo francês, Kawabata usou palavras tal qual os pintores modernistas usaram suas tintas, criando imagens aparentemente ingênuas porém repletas de conceitos e significados implícitos. Não tratou de condensar universos complexos, mas de simplificá-los até encontrar sua essência, explorada depois na forma de metáforas. Seus romances são leves, curtos, com poucos cenários e personagens rasos. Mas através de histórias aparentemente banais, contemplamos um Japão em crise, com seus valores antigos sendo substituídos pela cultura estrangeira que ganha espaço dia após dia.
Em Kyoto, a metáfora fica a cargo de tecidos para quimono, que se encontram no meio de um conflito travado entre a modernidade (representada por teares mecânicos de alta produção e baixa qualidade) e o passado (desenvolvimento de estampas para serem tecidas à mão, normalmente por membros de famílias especializadas). A escolha não poderia ser mais pertinente, pois a arte da tecelagem tem valor inestimável para a cultura japonesa – costuma ser usada até mesmo para contar a história do país, uma vez que cada dinastia desenvolveu seu próprio estilo e ditou a moda à sua maneira. Mas Kawabata não põe esta questão no centro da obra; ao contrário, vamos percebendo-a por entre os conflitos pessoais dos personagens, as relações amorosas, a rotina, os festivais, o contato com a natureza, as dificuldades em lidar com a tradição e as divergências da geração mais nova com seus pais.
Como o escritor sempre esteve muito ligado à arte moderna que se produzia no ocidente, a abstração é um tema usado constantemente para ilustrar os desentendimentos entre o novo e a tradição:
– A disposição destas pedras seria abstrata também? – perguntou Shin’ichi.
– Não seriam abstratos todos os jardins japoneses? – volveu Chieko. – Como os musgos sugigoke do jardim do templo Daigoji, de que tanto se fala como exemplo de arte abstrata. Chega a ser até enjoativo, mas...
– Não seriam abstratos todos os jardins japoneses? – volveu Chieko. – Como os musgos sugigoke do jardim do templo Daigoji, de que tanto se fala como exemplo de arte abstrata. Chega a ser até enjoativo, mas...
Sua linguagem é leve e poética, carregada de imagens simbólicas, de modo que consegue significar muito falando pouco. A mesma força sintética pode ser observada em Mil tsurus (1951), onde um incomum triângulo amoroso entre um rapaz e duas ex-amantes de seu pai se forma durante uma cerimônia do chá. O evento é típico da sociedade japonesa, ensinado de geração em geração e envolve significados profundos, tais como respeito, harmonia, pureza e tranquilidade. Kawabata se aproveita destes significados para mostrar a decadência das artes tradicionais do país no pós-guerra, perante a rápida ocidentalização dos costumes.
Naquele cenário quase religioso, a profanação se dá por meio de fofocas, mentiras e encontros amorosos secretos. Uma das principais personagens do romance, a mestra da cerimônia, usa o chá para futilidades, tais como apresentar pretendentes a casamento. Assim que vencemos o estranhamento causado pelas diferenças culturais entre Brasil e Japão, começamos a perceber a crítica implícita em situações aparentemente corriqueiras, vividas por personagens que flertam com o passado já sem conseguir amá-lo. As sutilezas dessas controvérsias se mostram em passagens como esta:
Aquela cerâmica havia saído de um forno antigo, devia ter pelo menos trezentos ou quatrocentos anos. Talvez, originalmente, tivesse sido concebida como mukôzuke, utensílio de mesa, ou similar. Talvez nunca tenha exercido a função de chawan. Suspeitava-se de que começara a ser utilizada como utensílio da cerimômia do chá havia muito pouco tempo. Os antigos cuidaram bem dela a fim de passá-la à posteridade. Era fácil imaginar os viajantes trazendo-a de longe, acondicionada em caixas de madeira. Por mais que fosse um desejo de Fumiko, Kikuji jamais permitiria que fosse quebrada.
Além do mais, era a cerâmica que estava manchada na borda pelo batom da mãe dela.
Além do mais, era a cerâmica que estava manchada na borda pelo batom da mãe dela.
O batom impregnado na cerâmica era difícil de ser removido, foi o que a mãe dissera a Fumiko. De fato, a mancha resistira apesar das lavagens aplicadas pessoalmente por Kikuji. Sua tonalidade era amarronzada, longe da cor viva do batom, e com um leve toque rosado, que bem podia ser de um batom velho... Quem sabe fosse apenas a coloração natural das cerâmicas Shino. Ou ainda, a sujeira deixada pelo proprietário anterior à viúva Ota, pois, quando usada como chawan, a boca do usuário toca sempre o mesmo lugar. O certo é que a viúva fora a pessoa que mais tinha usado aquele Shino para tomar chá.
Em O país das neves (1947), seu primeiro romance, os habitantes de um vilarejo místico, esquecido no meio das montanhas do norte, são envolvidos pela fumaça branca do trem que chega trazendo pessoas de cidades distantes para se misturarem às nativas, pela paisagem gélida, pelos vapores das casas termais e pelas brumas oníricas da pureza. Kawabata precisou inventar uma outra localidade para justificar esta tradição ainda intocada. Mas, como se sabe, tudo tende a desaparecer um dia:
Enroscando-se uma na outra, as borboletas foram atingindo alturas superiores às das montanhas fronteiriças, e o amarelo de suas asas foi embranquecendo, até elas se afastarem para longe.
Ali, a brancura é tudo que se vê; as relações humanas jamais se exibem com clareza, estando sempre ocultas pelo mistério, perdidas na neblina, significando mais do que as primeiras impressões deixam perceber.
O olhar crítico está presente nesses e em todos os seus outros romances. Mas sua arte, ao contrário das de Proust e Zola, é mais “literal”, com o perdão do termo. Digo isso porque Kawabata constrói cada cena como se realizasse uma pintura: risca alguns arbustos aqui, esboça as paredes de um templo ali, indica bosques de cedros com passagens sutis, esmiúça detalhes, tais como folhas secas cobrindo o chão e umidade em ripas de madeira, acrescenta um ou dois personagens para equilibrar a composição e dá os últimos retoques com diálogos breves e poderosos. No final, resta-nos uma bela imagem, bastante simbólica, para admirar.
O cuidado com o enquadramento também fica evidente: Kawabata escolhe trechos específicos da vida de seus personagens, excluindo tudo de passado e de futuro que seja desnecessário ao assunto, invadindo e abandonando sem jamais fechar o círculo, como se o leitor devesse interpretar para tirar suas próprias conclusões. Vemos aí um exemplo do que há de esteticamente moderno em sua literatura: o fluxo de pensamento e o abandono da estrutura aristotélica, com romances que fluem sem ficarem presos a um começo, meio e fim. Kawabata não quer falar do todo, mas trabalha sobre uma essência que pode vir a significar este todo, ainda que somente naquele breve instante representado. O movimento da obra, neste caso, vem de dentro para fora. E termina em nós.
Cada um dos seus livros acaba por ganhar forma de quadro. Ou de uma série deles, espalhados pelas páginas como numa exposição, revelando o ponto de vista do autor como se fossem paisagens capturadas por um observador atento e impressas em telas com pinceladas precisas. Kawabata soube ver o mundo com olhos de pintor. Por fim, ao lermos sua obra completa, descobrimos um Japão tomado por angústias, conflitos e incertezas, retratado com as palavras hábeis de quem testemunhou e soube passar para o papel o início de uma nova era.
Para quem quiser experimentar, sugiro as edições que a Estação Liberdade vem publicando desde 2004. Elas trazem pela primeira vez ao Brasil traduções cuidadosas, feitas diretamente do japonês e que não deixam o tom original se perder. Pois não resta dúvida de que a pintura com palavras é possível, mas ainda me pergunto como alguém é capaz de reunir tamanha habilidade para realizá-la. Yasunari Kawabata, do mesmo modo como fizeram grandes mestres do pincel, não revelou seu segredo, embora tenha nos deixado uma obra riquíssima para admirar e, quem sabe, obter dali uma resposta satisfatória. Por seu talento, recebeu o Nobel de Literatura em 1968. E, por seu olhar apurado, mereceria também o de artes plásticas, se tal categoria existisse.