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domingo, 8 de março de 2009

TRATADO VEGETARIANO DE NÃO-AGRESSÃO

Esta foi minha segunda crônica no Correio Popular, publicada dez dias após a primeira. Logo depois disso, estipulamos que as publicações aconteceriam apenas uma vez por mês. Assim, o jornal poderia ceder espaço a outros autores e eu teria mais tempo para desenvolver novos textos. Tem muita gente que funciona bem sob pressão e acaba tirando assuntos maravilhosos da cartola. Eu, sinceramente, prefiro um ritmo mais lento.
Uma curiosidade: a palestrante em questão tinha sido minha orientadora na pós-graduação. Coincidência ou não, a brincadeira não foi direcionada a mim, embora no começo eu tivesse ficado um tanto desconfiado.


Um tempo atrás, fui até a Pinacoteca de São Paulo prestigiar uma amiga que lá palestraria, convidada especialmente para a ocasião: a inauguração de uma grande exposição, dessas internacionais.

Estava na platéia com minha namorada e alguns colegas da área; ao todo, não somávamos cinqüenta pessoas e, num ambiente convidativo como aquele, eu me sentia em casa.

O artista em questão, Kurt Schwitters, revolucionou a arte alemã praticamente sozinho e ficou famoso por suas esquisitices: catava “lixinhos” nas ruas (engrenagens, parafusos perdidos, bilhetes usados de trem etc.), purificava-os seguindo um ritual de água e sabão e os incorporava à sua grande obra Merzbau, uma série de colagens esculturais que, aos poucos, tomou conta de sua casa.

Infelizmente, ele acabou incluído na lista de “artistas degenerados” de Hitler e, perseguido, foi obrigado a fugir para morrer isolado na Inglaterra alguns anos depois. Sua casa foi bombardeada pelos aliados e, da Merzbau original, nada restou a não ser umas poucas fotos e breves relatos de amigos que puderam visitá-la.

A palestrante, doutora em história da arte, aproveitou o momento trágico para provocar um outro amigo seu que também estava na platéia: falou sobre a personalidade perturbada de Hitler – algo como “Ele era maníaco e vegetariano” ou “Promovia matanças desumanas e não comia carne”. Não me lembro da frase exata, mas foi engraçado e todo mundo riu.

Mais tarde, nos minutos reservados às perguntas da platéia, descobri que aquela brincadeira deixou indignada uma garota sentada perto de mim. Ela pediu o microfone, disse que o vegetarianismo é coisa séria, não havia motivo para risos, e que o comentário sobre a atitude de Hitler era um tanto impertinente.

A palestrante pediu desculpas, disse que não teve intenção de ofender ninguém e que o vegetarianismo do ditador obviamente não tinha nenhuma relação com as atrocidades que ele cometeu – era apenas uma provocação particular, coisa de amigos que o ambiente intimista permitia. E era mesmo. Duvido que, em algum momento, alguém levou o comentário a sério, exceto a tal garota.

De qualquer modo, com aquele bate-boca bem polido, o clima na sala ficou tenso. Todos estavam desconcertados. Eu, também vegetariano, fiquei sem-graça, tive vontade de pedir o microfone e dizer a ela: “Por favor, não se leve tão a sério. É bom ter uma ideologia e isso é raro hoje em dia. Acredite, lute por ela, mas não faça a bobagem de acreditar que é a única verdade sobre a Terra. Foi exatamente isso que Hitler fez, e veja só os resultados... Então, vamos deixar o mal-entendido de lado e continuar com as perguntas?”

Fiquei pensando no que dizer, nas palavras exatas, e acabei perdendo a oportunidade: a garota se levantou e sumiu.

Tentamos voltar ao Schwitters, mas o assunto não engatava e acabamos a palestra rindo com o amigo vegetariano provocado, que tomou posse do microfone e tentava expor sua tese sobre a origem do costume de Hitler, atrapalhando-se mais do que explicando: era alguma coisa sobre Wagner, Nietzsche e uma dieta antiesquizofrênica. Ninguém entendeu nada, mas foi divertido. Devo admitir, o cara era espirituoso. Aliviou a tensão e fechou a palestra com a famosa chave de ouro.

Só mais tarde, quando todos estavam indo embora, descobri que a vegetariana ofendida continuara na sala – tinha apenas mudado de lugar. Fiquei mesmo arrependido de não ter dito a ela que defendesse seus pontos de vista somente quando eles são realmente atacados. Que não fosse tão impulsiva e não se ferisse com tão pouco, porque, no final das contas, duvido que alguém seja contra os vegetarianos e, se forem, como vamos provar que são eles os errados da história? É uma importante questão a ser debatida, porém, acho que o momento não foi oportuno. Quando isso acontece, normalmente dispersamos a atenção dos outros e geramos um preconceito que é difícil derrubar.

Enfim, encarar a vida considerando um único lado (o seu) não me parece muito saudável. Bom mesmo seria poder compreender todos à nossa volta, mas, como isso é praticamente impossível, simplesmente não os leve muito a sério e não se leve tampouco. Essa é a minha filosofia.