Esta crônica foi publicada há um ano e pouco me surpreende o fato de que nada mudou. Ou, se mudou, foi para pior.
Com ou sem crise, as montadoras continuam produzindo e vendendo milhares de veículos todo mês. Com ou sem crise, o povo continua comprando. Com ou sem crise, todos ficam parados no trânsito falando sobre a crise.
O que mais me desanima, no entanto, é que fui obrigado a parar com o ioga. Depois de 9 meses de prática, não consegui mais chegar no horário.
Demoro em média duas horas para ir de casa ao trabalho e o mesmo tempo para fazer o percurso inverso. É uma insanidade que só São Paulo explica (a cidade, não o santo). Acordo cedinho, pego ônibus, metrô, faço baldeação, pego outro metrô, caminho três quarteirões, pego um segundo ônibus e vou a pé os últimos quinze minutos. Daria para ir à praia, mas meu bate-e-volta diário é para o escritório mesmo.
Há aproximadamente dois meses, eu e minha namorada inventamos de fazer ioga nas manhãs das segundas-feiras, pertinho do trabalho, o que significaria sair de casa às cinco e meia da madrugada. Achei cedo demais e optei por um dos maiores sacrilégios da cidade: tirar o carro da garagem. Seria apenas uma vez por semana, duas pessoas no veículo e, na minha ingenuidade, acreditei que haveria chance de absolvição.
O início foi tentador: era janeiro, muita gente ainda estava de férias e nós precisávamos de apenas uma hora e dez para chegar lá. A volta demorava um pouquinho mais, hora do rush, sabe como é; mas tudo bem, aceitei a penitência.
No entanto, a primeira segunda-feira após o carnaval revelou a gravidade do meu pecado. Era a releitura mais atual do Inferno, de Dante, com as almas penitentes sofrendo fechadas em seus círculos individuais, engolindo fumaça, suando sob o sol quente do verão, torturadas por buzinações intermináveis.
Minha namorada ficou desconsolada. Queria usar a ioga para curar aquilo: colocar um new age em cada carro, levantar o megafone e fazer todos aqueles motoristas estressados recitarem juntos o mantra Óóóóhuummm...
Percebi que, para continuar chegando no horário, seríamos obrigados a sair de casa ainda mais cedo e retornar ainda mais tarde. Comparando com o tempo de ônibus + metrô, ficava, como dizem, elas por elas.
E a situação só tende a piorar. Qualquer bom-senso consegue imaginar a enorme e assustadora leva de novos motoristas que chega às ruas todo mês. Basta olhar as notícias sobre as montadoras: é um recorde atrás de outro. Em fevereiro, chegamos a seis milhões de veículos licenciados na cidade e uma média de oitocentos emplacamentos por dia. Mesmo o rodízio já não resolve nada há tempos.
No domingo passado, fiz uma experiência: percorri o mesmo trecho que durante as últimas segundas-feiras me tomou uma hora e meia de vida. Precisei de apenas vinte minutos.
Em outras palavras, o carro, que todo mundo tira da garagem para economizar tempo, acaba se revelando um dos grandes problemas da atualidade. E isso vale para a maioria das metrópoles, porque todos nós somos um bando de preguiçosos inconsequentes. Poluímos, gastamos absurdos com combustível, estacionamento e manutenção do veículo e acabamos com nossa própria saúde no meio daquela loucura.
Sempre gostei de transporte público por dois motivos: 1. Não suporto o processo de engatar a primeira marcha, avançar um metro, desengatar, esperar alguns instantes e fazer tudo de novo, e de novo, e de novo, durante uma eternidade; 2. Uso o tempo que passo no ônibus e no metrô para ler, ouvir música, conversar etc. Não é perdido; ao contrário, é tempo bem aproveitado.
Analisando dessa maneira, o carro se mostra cada vez uma economia mais burra. E, acredite, eu adoro dirigir.
Sempre que proponho a outros motoristas convictos largar o volante e tomar um ônibus, ouço que o transporte público é caro e precário. O pior é que é verdade. É ruim e mal-administrado. Mas as avenidas superlotadas, mal-sinalizadas e esburacadas nunca me pareceram muito melhores.
“Este mundo, em que eu suporto tudo o que suporto (...), este mundo moderno, enfim, que diabo querem que eu faça nele?”, já se perguntava André Breton, em 1924, no primeiro Manifesto do Surrealismo.
Pois seu mundo sem nexo ainda tem tudo a ver com a nossa realidade.
Um amigo, por esses dias, me confessou um inconformismo parecido: a frase que mais ouvia das pessoas era “O mundo está assim porque ninguém faz nada”. “Bom, o que você tem feito ultimamente?”, respondia ele.
Quer dizer que os problemas não se resolvem sozinhos?
Cruzar os braços e reclamar também não é a solução.
Outro amigo, grande mestre, aconselharia sabiamente o uso de seu método TBC – Tire a Bunda da Cadeira (no caso, do assento do motorista). Pois é, o único modo de melhorarmos o transporte público é mostrar nosso interesse em utilizá-lo e lutar por melhorias, tais como: maiores frotas, novas linhas e preços mais baixos. “Fazer acontecer”, como diria o publicitário e escritor Júlio Ribeiro. É nosso dever exigir o melhor de um serviço pelo qual estamos pagando. Entenda, ninguém está nos fazendo um favor ao oferecer transporte.
Não sei se, moralmente falando, o processo deveria ser assim. Acho que não, mas é só partindo da população que o transporte público funcionaria aqui no Brasil. Infelizmente, sempre falta o povo. O povo e sua teórica força.
Se formos esperar que as empresas, assim, de repente, tomem a atitude de mudar por si sós, podemos esperar sentados. Em casa. No entanto, se todos preferirem continuar acordando alguns minutos mais tarde, enfrentando horas de trânsito, enfartando aos quarenta e achando que é vantagem, tudo bem, mantenham a bunda sentada, eu os perdoo e à sua estupidez também. Consciência não é algo que se força, que se obriga, e eu não vou catequizar ninguém. Vamos ver no que dá. Se o trânsito for o Juízo Final, todo mundo vai chegar atrasado no além. E terá muita inércia a confessar.